Rio de Janeiro, 21, 22 e 23 de marco de 1986

Tem coisas que a gente nunca esquece.

No lado pessoal, não dá para esquecer as primeiras namoradas, a turma da esquina, o colégio, a faculdade, o casamento, os filhos e tudo o mais.

Com relação as diversões, alguns eventos são inesquecíveis.

Um grenal, no Beira-Rio lotado, é uma experiência única.

Assistir a um show ao vivo dos Rolling Stones provoca arrepios até hoje.

E, finalmente, a razão deste artigo, a primeira corrida de fórmula 1 em um autódromo.

O barulho dos motores, quase insuportável e ao mesmo tempo sensacional.

O cheiro da corrida, característico e extremamente viciante.

São sensações que eu tive em 1986, no Rio de Janeiro, e que hoje estão vivas na minha lembrança.

Hoje, passados quase quatorze anos, não tenho mais o bigode que eu usava na época.

Em compensação, ganhei sete quilos e muitos fios de cabelo branco.

Assistir uma corrida de fórmula 1, ao vivo, sempre foi o sonho da minha turma em Porto Alegre. A corrida poderia ser em São Paulo ou em Buenos Aires.

O tempo passava e o sonho não se realizava.

Até que, em razão da minha atividade profissional, fui promovido e transferido para Campinas.

A corrida agora não era mais em Interlagos. Tinha sido transferida para Jacarepaguá.

Agitei a minha turma com o argumento de reunir a gauchada no Rio de Janeiro.

A perspectiva de um final de semana no Rio, assistindo a corridas, passear na cidade e reencontrar a velha turma, era irresistível.

Ninguém resistiu.

Combinamos o encontro em um hotel de Copacabana na manha de 6a feira.

Quem também chegou ao Rio de Janeiro foi o ex-piloto Innes Ireland.

Ele estava a trabalho, escrevendo artigos para a revista Road & Track.

Arranjou uma namorada brasileira e foi para Copacabana, sexta-feira a noite, passear.

No calçadão, onde caminhava, foi assaltado por 5 marginais.

Ireland, ex-oficial das forcas armadas britânicas, ainda em forma, saiu no braço com os ladrões.

Deu um cacete nos cinco e ainda foi ajudado pela namorada brasileira que, com o salto do sapato, atingia a cabeça dos bandidos.

Innes Ireland botou os ladrões para correr e continuou namorando. Grande figura.

A gauchada chegou na 5a feira a noite enquanto minha mulher e eu desembarcamos no outro dia bem cedo.

Imaginem a farra do reencontro.

Depois dos abraços e do café da manha bem reforçado, fomos para o autódromo ver o primeiro treino.

Primeiras impressões.

O autódromo é bonito.

Tem boa visibilidade.

Os carros são muito barulhentos.

Que calor danado.

Os carros são menores do que eu imaginava.

As camisetas e os bonés das equipes são muito caros.

A cerveja está quente.

Piquet, correndo pela primeira vez com a Williams, era a grande atração.

Senna, no lindíssimo JPS preto, também.

Nelson Piquet fez o melhor tempo, quase um segundo mais rápido que Ayrton Senna.

Acabou o treino.

Fomos para Ipanema almoçar, beber, passear e conversar.

Assunto não faltava.

Assim foi até as 11 horas, quando retornamos ao hotel.

Afinal, no outro dia, começava tudo de novo.

Sábado no autódromo.

Um calor desgraçado.

Comprei um boné amarelo da JPS. Lindo e caro.

Piquet estava com o melhor tempo e, gostando cada vez mais do carro, sai, novamente, para a pista, tentando melhorar ainda mais.

Abusou, errou e bateu.

Veio a equipe de socorro e um mecânico assumiu o volante do carro que estava sendo rebocado. Ao passar pela nossa frente, ele foi ovacionado pela arquibancada como se fosse o vencedor da corrida. O mecânico vibrava e acenava como um vencedor de GP. Foi uma grande gozação, devidamente fotografada.

Quando a pista foi reaberta, faltavam cinco minutos para acabar o treino.

Aí, Ayrton Senna, montado em seu Lotus equipado com um super motor Renault de classificação, saiu dos boxes.

Lentamente, Senna iniciou uma volta para aquecer pneus.

Devagar, parecia estar provocando a platéia.

Todos os olhos estavam em Ayrton Senna.

Ele completou toda a volta muito devagar, atrapalhando, inclusive, três ou quatro pilotos que estavam tentando melhorar a classificação.

Na curva da vitória, repentinamente, Ayrton Senna desperta os 1.100 cavalos de potência do motor Renault.

Inicia a volta em um rítimo alucinante.

Parecia mágica.

Era inacreditável.

As trocas de marcha eram instantâneas.

O motor parecia estourar.

Os pneus cantavam como nunca cantaram.

As curvas pareciam retas.

As retas foram engolidas.

Senna completou a volta mais impressionante que eu vi, e conquistou a pole.

Nunca houve volta igual.

Terminou o treino.

Fomos passear, almoçar, beber e conversar.

Muita conversa.

No almoço notei, pela primeira vez, uma nítida divisão de preferência da torcida por Piquet e Senna. As mulheres, em sua grande maioria, optaram por Senna.

Pela primeira vez na vida eu participei de uma calorosa discussão sobre quem era o melhor. Essa discussão nunca teve fim. Até hoje.

Domingo de corrida.

Muito calor.

Autódromo lotado.

Bombeiros mandando jatos de água na arquibancada.

Conheci um casal de italianos que estava iniciando uma volta ao mundo acompanhando a fórmula 1.

As mulheres colocaram algodão nos ouvidos antes da largada.

Largaram.

O barulho é impressionante.

O coração acompanha cada troca de marchas.

Ayrton Senna sai na frente, seguido por Mansell que fez ótima largada, e Piquet.

Mansell grudou na traseira de Senna.

Piquet, contando com um previsível enrosco, aguardava em terceiro.

Cauteloso.

Os líderes entraram na grande reta oposta, onde estão as enormes e lotadas arquibancadas.

O público delira.

Senna rasga a reta.

Mansell colado nele.

Na freada para a Curva Sul, Mansell emparelha com Ayrton.

Entram na curva.

Ninguém alivia.

O toque de rodas é inevitável.

Mansell sai da pista, roda e bate no guard-rail.

A arquibancada vibra.

Polêmica. Mansell foi precipitado ou Senna empurrou o inglês?

Discussão: O Senna fechou o inglês. Mansell é barbeiro.

A torcida, cada vez mais dividida, vibrava com Senna e Piquet.

Na segunda volta, Senna liderava, seguido por um satisfeitíssimo Piquet.

Em terceiro, vinha Arnoux, seguido por Alboreto, Rosberg e Johamson.

No final da reta oposta, Piquet tenta passar Senna e não consegue.

Na terceira volta, Piquet inicia a grande reta oposta grudado em Ayrton.

Na metade da reta ele emparelha.

E, bem antes do ponto de freada da Curva Sul, faz a ultrapassagem.

Piquet posicionou-se de tal maneira que Senna ficou sem possibilidade de reação.

Piquet dispara.

Senna está confortável em segundo lugar.

Alboreto ultrapassa Arnoux e assume a terceira posição.

No pelotão intermediário acontecia uma aula de pilotagem.

O professor Alain Prost, que tinha completado a primeira volta em décimo terceiro lugar, estava ultrapassando, um a um, seus adversários.

Prost completou a segunda volta em nono lugar.

O francês, no final da terceira volta, conquistou o 6o lugar.

Chegamos a volta número nove e Prost apresenta-se em quinto lugar.

Piquet e Senna, tranqüilos.

Era uma delícia acompanhar Alain Prost fazer as curvas no mesmo lugar, trocar as marchar com precisão e executar ultrapassagens limpas.

Parecia passear.

E o cronômetro insistia em mostrar que Alain Prost voava na pista.

Os dois brasileiros continuavam na frente.

Estamos na volta 16 e Prost, impecável, conquista a terceira colocação.

Na volta seguinte, para espanto geral, Prost supera Ayrton Senna e assume o segundo lugar.

Piquet, na volta 19, entra nos boxes, troca os pneus e retorna em terceiro lugar.

Alain Prost, notável, assumiu a liderança, seguido por Ayrton Senna.

Nelson Piquet, voando baixo, começou a recuperação.

Em poucas voltas Piquet alcança e supera Ayrton Senna.

O Williams estava muito equilibrado e permitia uma rápida aproximação de Piquet em relação a Prost.

Porém, para a alegria da torcida, o motor Porsche do McLaren abriu o bico.

Prost abandonou.

Piquet voltou a liderar.

Nelson Piquet, disparado na frente, fez a sua segunda troca de pneus.

Quase ao mesmo tempo, Ayrton Senna trocava os seus pela primeira vez.

Piquet, satisfeito e testando os limites do Williams, fez a melhor volta da corrida e estabeleceu o novo recorde da pista.

A corrida encaminhava-se para o final e as posições, praticamente, estabelecidas.

A equipe Ligier ocupava a terceira e a quarta colocação, com seus pilotos Arnoux e Laffite.

Faltavam dez voltas para o final e Laffite ultrapassou Arnoux, assumindo o terceiro lugar.

A corrida terminou.

Piquet venceu.

Senna em segundo.

Dobradinha brasileira.

Alain Prost deu uma aula.

Valeu cada centavo do preço do ingresso.

Fomos rápido para o hotel.

Logo em seguida, aeroporto e despedidas.

Abraços e promessas.

A próxima corrida que veremos juntos será em Mônaco. Com direito a sacada e vinho branco.

A promessa até hoje não foi cumprida.

Algum dia, com certeza, será.

O Grande Prêmio do Brasil de 1986 foi um sonho realizado.

Foi o meu primeiro Grande Prêmio.


Campinas, 5 de fevereiro de 2000


Cláudio Medaglia